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quarta-feira, 5 de maio de 2010

ARTIGO OTTO BACHOFF

NORMAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS?

Disponível em: http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/salvador/thais_bandeira_oliveira_passos.pdf


A TEORIA DE OTTO BACHOF

Thaís Bandeira Oliveira Passos∗

Vanessa Vieira Pessanha∗∗

RESUMO

O presente trabalho tem por escopo fundamental desenvolver uma apreciação crítica sucinta e fundamentada acerca da obra de Otto Bachof, “Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, objeto central de análise no artigo ora apresentado, na qual o supracitado autor discorre sobre a possibilidade ou não de se encontrar no bojo de uma Carta Constitucional (inicialmente se pensando de maneira teórica, portanto as reflexões, a priori, podem ser transplantadas, com as devidas adaptações, para a realidade de qualquer país) normas originárias eivadas pela inconstitucionalidade. Trata-se de um assunto controvertido na doutrina, a respeito do qual Otto Bachof se posiciona de acordo com o sistema jurídico alemão, conforme se demonstrará no decorrer desse texto. Portanto, a teoria desenvolvida pelo doutrinador ganha contornos específicos ao trabalhar com a realidade por ele vivida, haja vista as especificidades de cada sistema jurídico, determinadas pelas diferentes culturas, naturais e essenciais para que o Direito possa cumprir sua função vital. Tal análise foi desenvolvida, em um primeiro momento, a partir da explanação dos argumentos trazidos pelo autor, com fundamento no ordenamento jurídico alemão, para, só após, em um segundo momento, fazer uma análise crítica em paralelo com a doutrina e jurisprudência pátrias, residindo justamente nesse ponto a grande contribuição deste artigo: uma reflexão sobre a teoria de Bachoff adaptando-a à realidade jurídica brasileira.

∗ Bacharel em Direito (UFBA). Especialista em Ciências Criminais. Mestranda em Direito Público (UFBA). Advogada. Professora da Faculdade Baiana de Direito, da Unyahna e da Escola dos Magistrados da Bahia (EMAB). Coordenadora do curso de Direito Penal da Escola de Ensino Superior (ESAD).

∗∗ Bacharel em Direito pela Universidade Salvador (UNIFACS). Bacharel e Licenciada em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestranda em Direito Privado e Econômico pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Advogada. Tutora da Unifacs.

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PALAVRAS-CHAVE: NORMAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS. POSSIBILIDADE. HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL.

ABSTRACT

This main scope of this work is to develop a brief critical analysis based on the work of Otto Bachoff, “Unconstitutional Constitutionals Norms?”, (which is the focus of study in this present paper) in which he discourses about whether there is or not a possibility of the existence, in the midst of a Constitutional Charter (initially the discourse is only theoretical, but consequently these reflections may be adapted and transferred to the reality of any other country) standard rules full by unconstitutionality. Therefore, the theory that is developed by the indoctrinator has specific details when it is worked through his reality, due to the specificities of each juridical system, which are determined by the different cultures, that are natural and essential to the accomplishment of the Law. This analysis was developed, in a first moment, from the explanation of the arguments brought by the author, based on the German legal system, to make then, just after, in a second moment, a critical analysis in parallel to the doctrine and jurisprudence of the country. At this point, it is where it lies the great contribution of this work: a reflection on the theory of Bachoff, and the adaption of this theory to the Brazilian juridical reality.

KEYWORDS: CONSTITUTIONAL UNCONSTITUTIONAL RULES. POSSIBILITY. CONSTITUTIONAL HERMENEUTICS.

INTRODUÇÃO

Inicia-se esse estudo abordando apenas os aspectos tratados na obra de Otto Bachof, sem, contudo, tecer considerações críticas sobre essa teoria. Buscou-se uma maior fidelidade ao texto original, na tentativa de proporcionar ao leitor o exato conhecimento do pensamento do autor. Ressalte-se que o ordenamento jurídico utilizado como parâmetro para o desenvolvimento do tema é o alemão. Portanto, quando se pretende traçar um paralelo com o ordenamento brasileiro, este é realizado de forma expressa. A análise da teoria em confronto com o constitucionalismo brasileiro, sob o prisma da hermenêutica jurídica, é objeto de explanação no último item desse trabalho. 3759

A possibilidade de ocorrência de normas constitucionais inconstitucionais ou, em geral, inválidas, bem como de um correspondente direito judicial de controle, representam um problema particularmente atual do direito constitucional e da própria hermenêutica. Isso induz ao reconhecimento de que uma norma constitucional pode não possuir obrigatoriedade jurídica nos mesmos termos em que as outras normas jurídicas.

A questão abordada contende com pontos nevrálgicos da dogmática jurídico-constitucional, quais sejam, o do conceito de Constituição e o da natureza do poder constituinte, no plano material, bem como o do controle contencioso da constitucionalidade, no plano processual. Surgem, freqüentemente, interrogações sobre o conteúdo e o alcance de certas normas da Constituição, restando a dúvida acerca do legislador constituinte ter ou não, ao final, exorbitado sua missão e seus poderes ao tomar as correspondentes decisões, deixando inacabada a obra de reposição do império do direito, que dele seria de se esperar. Eis, assim, como o tema da inconstitucionalidade das normas constitucionais se tornou de candente atualidade.

A Alemanha passava por uma conturbada transição sócio-política face ao colapso da ditadura nacional-socialista no final dos anos 40, início dos anos 50, o que deu ensejo à conferência realizada pelo Prof. Otto Bachof, no dia 20 de julho 1951. Surge, assim, uma viva discussão que levou a uma tomada de posição em sentido contrário à perspectiva do positivismo jurídico, culminando com a obra ora esposada. Não é por acaso que a discussão sobre a obrigatoriedade das leis e de outros modos de atuação estatal, contrários à justiça, aparece com especial intensidade quando regimes contrários ao Estado de Direito são substituídos por este.

O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, assim como outros tribunais alemães, reconheceu em várias decisões a existência de direito “suprapositivo”, obrigando também o legislador constituinte. Declarada a pequena probabilidade de um legislador democrático e livre ultrapassar algures esses limites, a possibilidade teórica de ocorrerem, num Estado de Direito, normas constitucionais originárias inconstitucionais quase equivale a uma impossibilidade prática. Entretanto, esse fenômeno, que só na aparência é paradoxal, não deve ser esquecido, servindo como advertência permanente de que a onipotência do Estado deve ter limites.

1 CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO

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1.1 CONSTITUIÇÃO EM SENTIDO MATERIAL E EM SENTIDO FORMAL

O autor limitou-se a entender a Constituição como um sistema de normas jurídicas, partindo do pressuposto de que “uma norma só pode ser medida por normas, não por uma situação ou um processo evolutivo”1. A partir desse conceito, cumpre distinguir, quanto ao conteúdo, a Constituição em sentido material e em sentido formal.

No sentido material, será, de acordo com os ensinamentos de Smend, “o conjunto de normas jurídicas sobre a estrutura, atribuições e competências dos órgãos supremos do Estado, sobre as instituições fundamentais do Estado e sobre a posição do cidadão no Estado”2. Também se incluem nesse conceito de Constituição as disposições sobre os direitos fundamentais. Há quem entenda que Constituição só se relaciona a essas matérias, conferindo às demais, não obstante integrem uma constituição escrita, a natureza de normas inconstitucionais.

Já no sentido formal, Constituição será uma lei que, embora se refira a outras disposições, sem o caráter organizativo e estruturante do Estado, é erigida a este patamar, por conta de características formais. Destarte, nem todas as normas constitucionais são direito constitucional material – muitas apenas foram recepcionadas pela Constituição devido a interesses de cunho social e político. Assim, evita-se que possam ser modificadas futuramente por uma maioria “desqualificada” do parlamento.

1.2 CONSTITUIÇÃO E DIREITO SUPRALEGAL

É de grande importância, para o completo entendimento sobre este trabalho, fazer uma abordagem sobre o denominado direito supralegal. A teoria das normas constitucionais inconstitucionais vislumbra a possibilidade de invalidade das normas constitucionais por infração do direito supralegal (direito pré-estadual, supra-estadual, suprapositivo, direito natural). Esse direito seria composto por “normas” que antecedem a existência do Estado, que não se referem tão somente aos direitos naturais dos indivíduos (vida, liberdade). Sua pré-existência, para os defensores, impõe a observância por todos os Estados, independentemente da positivação na Constituição.

Referindo-se ao Direito alemão, Mallmann já acentuava que o próprio legislador da Lei Fundamental acolheu o direito supralegal, especialmente nos artigos I, 3, 20, nº

1 BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Trad. e nota prévia de José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994.

2 Apud BACHOF, Otto. Ob. Cit., p. 39.

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3, e 25, quando incorporou valores metafísicos à sua Constituição. Dessa maneira, o legislador reconheceu o Direito supralegal como válido, visto que dotado de positividade3. Além dessa recepção, a Lei Fundamental alemã, no seu artigo 79, nº 3, incluiu essas normas na zona da imodificabilidade. Ressalta Bachof, porém, que a positivação do direito supralegal na Lei Fundamental alemã não significa que todas as normas do direito natural tenham sido incorporadas, nem que todas as normas constitucionais formais estejam em consonância com o direito supralegal positivado. Para os alemães, esse direito tem fundamental importância quando observado o direito passado próximo. Hippel demonstrou que a restrição da legitimidade de uma Constituição à sua positividade redundaria “na igualdade poder = direito”4.

Tal importância, no entanto, não se limita à lembrança do passado próximo, posto que a própria Lei Fundamental determina a incorporação de direito supralegal na Constituição como fato que tem apenas o significado declaratório e não constitutivo, senão esse direito não seria supralegal. Otto Bachof sustenta que o reconhecimento da existência do direito natural não pode ensejar um reconhecimento parcial, indicando que, ou este existe, sendo, portanto, válido – independentemente de estar positivado –, ou não existe, implicando uma contradição o seu reconhecimento, mesmo que parcial.

O conceito material de Constituição presume que se leve em consideração o direito natural. Dessa constatação resulta a característica de autonomia ilimitada do poder constituinte originário, somente persistindo diante das vinculações supralegais. A violação de direito supralegal, destarte, acarretaria a alcunha de inconstitucionalidade.

2 VIOLAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO ESCRITA

Uma Constituição escrita pode ser violada formal e materialmente. O primeiro caso ocorre quando uma norma não preenche os requisitos formais constitucionais necessários para sua feitura. Já o segundo ocorrerá toda vez que uma norma infringir determinada matéria constitucional, contrariando direito supralegal positivado.

2.1 INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS ILEGAIS

Para Bachof, a legalidade confunde-se com a questão formal, sendo ilegal qualquer norma que não preencha os requisitos formais necessários para sua criação. Já

3 Apud BACHOF, Otto. Ob. Cit., p. 41.

4 Apud BACHOF, Otto. Ob. Cit., p. 45.

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a legitimidade, entendida como vontade do povo, confundir-se-ia com o direito supralegal, que, para ele, é aquilo que todos anseiam, por sua relação com os princípios éticos, morais e humanísticos norteadores da sociedade e de uma ordem constitucional.

Sendo assim, na criação de uma nova constituição não há que se falar em legalidade, tendo em vista que o poder constituinte originário é soberano, independente e autônomo, e não se sujeita às regras formais. As limitações resumem-se ao campo da legitimidade, pois o poder constituinte, ao criar uma nova ordem constitucional, deve fazê-la de acordo com o direito supralegal.

É possível, no entanto, que, em um momento posterior à sua criação, se verifique a ilegalidade de uma Constituição, desde que esta não atenda aos requisitos formais constantes no seu próprio texto. Quando, por exemplo, um de seus artigos preveja que ela só entrará em vigor após a sanção presidencial, e, mesmo sem atender a esta regra, ela seja promulgada e publicada, estaremos diante de uma Constituição ilegal.

Pode ocorrer também, e mais facilmente, a ilegalidade de uma norma isolada da Constituição, desde que esta imponha uma condição para que aquela norma entre em vigor, e a mesma não seja atendida. Assim, a Constituição em todo o restante de suas determinações seria eficaz, com exceção da norma isolada que não preencheu os requisitos formais necessários para sua vigência. Esse seria justamente o caso de uma norma constitucional inconstitucional (inválida).

2.2 INCONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS DE ALTERAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

É comum que as constituições tragam disposições limitando alterações futuras em seu texto, visando, com isso, a dar maior segurança, rigidez e conservadorismo ao texto constitucional, tendo em vista sua importância e superioridade. Essas limitações podem ser formais ou materiais. Uma lei que objetive alterar uma Constituição sem, no entanto, preencher os requisitos necessários impostos por essa mesma Constituição, seria inconstitucional por infringi-la formalmente. No Brasil, por exemplo, seria formalmente inconstitucional a emenda cujo processo de formação não estivesse adequado ao art. 60 da Constituição pátria, que trata da matéria.

Há também a possibilidade de uma Constituição prever que determinada parte de seu texto é imodificável, tornando qualquer lei que tente alterá-la materialmente

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inconstitucional. As cláusulas pétreas da Constituição brasileira são exemplos de matéria que não podem ser alvo de emendas que tendam a aboli-las.

Assim, a lei que infringisse a Constituição, tanto formalmente como materialmente, seria inconstitucional. Para Bachof, no entanto, há a possibilidade dessa inconstitucionalidade tornar-se direito constitucional vigente, desde que a infração, baseada na vontade do povo e no direito suprapositivo, mesmo que não atenda aos requisitos necessários ou modifique matéria inalterável, se imponha, positivando-se e gerando efeitos. Dessa forma, não se trata de revisão, mas sim de remoção de parte da Constituição até aí existente. Esse ato não está sujeito aos limites constitucionais por não se tratar de poder constituído; trata-se de um ato constituinte originário, autêntico e eficaz, com suporte na vontade do povo, titular desse poder.

2.3 INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS EM VIRTUDE DE CONTRADIÇÃO COM NORMAS CONSTITUCIONAIS DE GRAU SUPERIOR

Parece paradoxal imaginar que uma norma elaborada pelo poder constituinte originário seja inconstitucional, pois uma lei constitucional não pode, manifestamente, violar a si mesma. Contudo, para o autor, deve-se distinguir as normas constitucionais de significado secundário, meramente formal, e aquelas de “grau superior”, que contêm preceitos materiais fundamentais para a Constituição. A partir daí, as normas ditas inferiores que contrariassem aquelas seriam inconstitucionais ou não vinculativas, carecendo, portanto, de obrigatoriedade jurídica, já que a sua efetivação poderia ferir direito supralegal. No entanto, Bachof acredita que não é sempre que se encontra uma pretensa incompatibilidade entre normas constitucionais de graus diversos, que se estará diante de uma inconstitucionalidade, pois há a possibilidade do legislador constituinte originário, autônomo, criar exceções ao direito estabelecido. Não se trataria, nesse caso, de uma contradição do legislador constitucional, mas sim de regra e exceção.

Ao admitir as exceções, o legislador constituinte deve ter cautela para não infringir certas normas de direito supralegal, pois o autor afirma que o poder constituinte (até o originário) sofre limitação quanto à sua legitimidade. Assim, ele não admite que sejam criadas normas excepcionais sem concordância com os princípios

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constitucionais basilares, já que faltaria legitimidade ao legislador – caracterizando arbitrariedade –, sendo essas normas, portanto, inconstitucionais (não vinculativas).

Há também a possibilidade do legislador, sem perceber, criar uma disposição constitucional “inferior” contrária a uma de grau mais elevado. Como não há possibilidade de se provar que uma contradição surgiu por erro do legislador – uma interpretação constitucional deve ser baseada na vontade objetiva deste –, nesse caso, há uma contradição insolúvel (inconstitucionalidade), por não se tratar de regra e exceção.

2.4 INCONSTITUCIONALIDADE RESULTANTE DA “MUDANÇA DE NATUREZA” DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. CESSAÇÃO DA VIGÊNCIA SEM DISPOSIÇÃO EXPRESSA

Quando certos pressupostos, considerados determinantes para a emissão de uma norma por parte do legislador, não se verificam a posteriori, bem como frustram as expectativas atreladas a uma norma jurídica, pode-se ter a perda do sentido dessa norma. Cabe, então, via de regra, ao legislador a verificação das conseqüências da ocorrência de tais adventos e, em seguida, a realização das necessárias modificações.

Além das duas hipóteses acima mencionadas, pode-se também admitir a possibilidade, em razão da existência de uma finalidade de integração da ordem constitucional, de normas presentes nesta se tornarem obsoletas. Isso ocorre quando não cumprem mais a sua função integradora, começando, eventualmente, até a exercer um papel desintegrador. Assim, coloca-se a questão de distinguir se tais normas, a partir da configuração das situações postas acima, tornaram-se “inconstitucionais” ou apenas tiveram a cessação da sua “vigência”.

Pode-se determinar o momento de cessação da vigência de uma norma pela fixação de uma data, pela verificação de um determinado acontecimento, pela ligação com o decurso de um prazo ulterior, como também – deve-se ressaltar – pode advir do desaparecimento de pressupostos tidos pelo legislador como naturais ou do fim da situação de exceção para a qual a norma foi estabelecida. Seguindo esse raciocínio, é de se ver que normas constitucionais, dotadas de uma limitação no tempo e não definidas de forma expressa por meio do advento de uma data ou de um acontecimento, subsistem formalmente como parte integrante da constituição até o momento de sua expressa revogação. No caso, então, de haver incompatibilidade material com o conteúdo do

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texto constitucional, em razão do desaparecimento dos pressupostos de tais normas, deve-se entender, portanto, que passaram a ser inconstitucionais.

Ainda faz-se mister perceber, por fim, que, para a validade de tais normas em seu âmbito jurídico–material, não há qualquer relevância diferenciá-las como normas que passaram a ser inconstitucionais ou que tiveram a cessação da sua vigência. O mesmo já não se poderá dizer, entretanto, no tocante à competência judicial de controle, em que será fundamental, para a aferição desta, o reconhecimento ou não da inconstitucionalidade da norma em questão.

2.5 INCONSTITUCIONALIDADE POR INFRAÇÃO DE DIREITO SUPRALEGAL POSITIVADO NA LEI CONSTITUCIONAL

Quando uma norma jurídica infringe direito supralegal positivado na Constituição, configura-se tanto a sua contrariedade ao direito natural (tendo-se como parâmetro um sentido material de Constituição), quanto a sua inconstitucionalidade (numa acepção mais formalista). Assim, a incorporação de direitos supralegais no texto constitucional tem como conseqüência o fato de que toda e qualquer desconsideração que se tenha eventualmente desses direitos não se encontre tão somente no plano da contrariedade ao direito natural, acarretando também, ao mesmo tempo, uma afronta ao conteúdo fundamental da Constituição (em sua acepção formal), pois o direito supralegal já está positivado nesta.

De tal maneira, pode-se afirmar que, se uma norma constitucional contraria uma outra norma da Constituição em que esteja positivado um direito supralegal, aquela outra norma será formalmente inconstitucional por ferir esta, apesar de que, deve-se ressaltar, a razão em si da sua não obrigatoriedade ou da sua não vinculação jurídica seja, propriamente, a sua violação ao direito. Pode-se depreender, destarte, que, em sede de direitos supralegais, a positivação não significa a criação de normas jurídicas novas, mas tão somente o reconhecimento da existência de um direito “pré-constitucional”.

Em conclusão, não há relevância para a validade das normas infratoras do direito supralegal positivado a questão de serem elas inconstitucionais ou não, pois a inconstitucionalidade está atrelada, simplesmente, à declaração (reconhecimento) de existência de um direito anterior à ordem constitucional que é positivadora daquelas. 3766

3 VIOLAÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL NÃO ESCRITO

Otto Bachof admite, em sua obra, a possibilidade de haver inconstitucionalidade de norma presente na Constituição quando esta esteja em desacordo com o direito constitucional material (relacionado ao conteúdo da norma), mesmo que este seja não escrito. Três hipóteses em que essa inconstitucionalidade poderá ocorrer são elencadas, explicitando, contudo, que não pretendeu esgotar o tema, deixando a possibilidade de existência de outros casos. Por hora, analisar-se-á as hipóteses previstas na obra.

3.1 INCONSTITUCIONALIDADE POR INFRAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUTIVOS NÃO ESCRITOS DO SENTIDO DA CONSTITUIÇÃO

Por essa espécie de inconstitucionalidade pode-se entender que existem princípios sob os quais se assenta a ordem constitucional, mesmo não estando eles presentes expressamente no texto.

Caso não façam parte do rol dos direitos elencados como supralegais, estarão à disposição do Poder Constituinte, na oportunidade da feitura do texto constitucional. Significa dizer que, na oportunidade desta elaboração, caberá ao legislador originário estabelecer sobre quais princípios norteadores se lastreará a ordem constitucional. A partir daí, passa-se a ter uma vinculação a estes princípios, mesmo que não expressos.

Já com relação ao Poder que o autor denomina de “constituído”, o que seria em nosso ordenamento a competência reformadora (também denominado Poder Reformador, entretanto não com muita propriedade), este não poderia romper a ordem balizadora do texto constitucional, não ficando ao seu alvedrio a faculdade de revisão.

É o que resta demonstrado através das palavras de Michel Temer:

Não há dúvida [...] de que o constituinte está limitado pelas forças materiais que o levaram à manifestação inauguradora do Estado. Fatores ideológicos, econômicos, o pensamento dominante da comunidade, enfim, é que acabam por determinar a atuação do constituinte.5

Deve-se fazer, para uma melhor compreensão do tema de que trata o autor, uma distinção entre texto e norma. Nem sempre haverá um texto para expressar uma norma; as normas existem independentemente de suporte físico. Humberto Ávila aponta que

5 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 15. ed. São, Paulo: Malheiros, 1999, p. 33-34.

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não existe uma “correspondência biunívoca” entre texto e norma, dissociando-nos da idéia de que um obrigatoriamente só existe na dependência do outro.6

Aponta, ainda, o doutrinador supracitado casos no ordenamento pátrio em que há norma, mas não há dispositivo correspondente. Há quem sustente, inclusive, que esses princípios estariam implicitamente previstos em algum texto normativo. Trata-se do princípio da segurança jurídica, que deve ser respeitado, mesmo sem estar positivado.7

O exemplo dado por Bachof pode ser transposto para a realidade brasileira: a idéia de Federação. Não só ocorre inconstitucionalidade com norma que intente modificar esse modelo de organização do estado, como também aquelas normas que, por meio transverso, mitiguem esse princípio; mesmo que a norma não atente contra o dispositivo da Constituição que veda expressamente a mudança do Federalismo, poderá ser ela inconstitucional, caso, indiretamente, venha a ferir os próprios princípios norteadores da concepção de Federação. É como se o Poder Constituinte originário pudesse escolher, por ocasião da elaboração da ordem constitucional, entre as diversas formas de organização do Estado. Mas, estando previsto na Constituição qual o modelo adotado, todos os princípios a ele inerentes deverão ser respeitados.

3.2 INCONSTITUCIONALIDADE POR INFRAÇÃO DE DIREITO CONSTITUCIONAL CONSUETUDINÁRIO

Otto Bachof aponta, dentre as modalidades de direito constitucional não escrito, o direito consuetudinário. Destarte, cria como hipótese de inconstitucionalidade a infração a este direito, embora admita a dificuldade de ocorrer tal hipótese. Dispõe o autor que este direito consuetudinário poderá completar ou até mesmo afastar o direito constitucional. Ressalva que há afastamento do direito constitucional nos casos em que há mudança paulatina no sentido das normas, mesmo sem haver alteração textual. Observe-se que se trata de um típico caso de interferência da hermenêutica na forma de enxergar e aplicar o direito. É como se os sentidos conferidos à norma constitucional fossem sendo gradualmente alterados pelo direito consuetudinário, como ocorre, por exemplo, nas mutações constitucionais. Parafraseando Canotilho, muda o sentido sem mudar o texto.

6 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. Malheiros Editores, São Paulo, 2004, p. 23.

7 “Em alguns casos há norma mas não há dispositivo. Quais são os dispositivos que prevêem os princípios da segurança jurídica e da certeza do Direito? Nenhum.” Ob. Cit., p. 22.

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Ocorre que, muitas vezes, podem haver demasiadas ampliações ou mitigações no sentido original da norma constitucional, o que, para Otto Bachof, enseja a inconstitucionalidade da norma. Mesmo reconhecendo-se a não imutabilidade da Constituição, há limitações que, não sendo observadas, geram um descompasso entre o novo sentido e o direito constitucional já concretizado.

Transpondo a realidade alemã para o nosso ordenamento, o ensinamento do Prof. Humberto Ávila exemplifica essas questões de ampliação demasiada do sentido da norma, criticando veementemente a posição pacífica do Supremo Tribunal Federal, que, de modo indireto, permite que, a pretexto de concretizar a norma, a praxe altere o seu real sentido.8

3.3 INCONSTITUCIONALIDADE (INVALIDADE) POR INFRAÇÃO DE DIREITO SUPRALEGAL NÃO POSITIVADO

Já é sabido que o direito alemão é todo pautado na existência de uma orientação maior que o próprio direito positivado, que é o denominado ‘direito supralegal’. Esse direito supralegal, como afirma o autor, já está praticamente todo positivado no texto constitucional alemão, uma vez que a constituição deverá expressar os valores do povo. A norma constitucional, destarte, comporta-se perante o Direito como concretização maior dos valores, consoante entendimento do professor Miguel Reale: "a norma é a forma que o jurista usa para expressar o que deve ou não deve ser feito para a realização de um valor ou impedir a ocorrência de um desvalor"9. Ao afirmar ser o direito supralegal inerente ao Estado de Direito, atribuindo, inclusive às normas formalmente constitucionais a existência desse direito, Otto Bachof classifica de inconstitucional a norma legal que infringir norma constitucional que positivou o direito supralegal (tanto faz ser formal ou material a norma constitucional) e qualifica de ilegítima, no tocante à sua obrigatoriedade, a norma constitucional que violar direito supralegal positivado na Constituição. É importante, ainda, ressaltar o caráter de igualdade conferido ao direito supralegal com conteúdo fundamental da Constituição. Vale dizer, havendo norma constitucional em desrespeito a um direito supralegal, mesmo não sendo esse

8 “Compreender ‘provisória’ como permanente, ‘trinta dias’ como mais de trinta dias, ‘todos os recursos’ como alguns recursos, ‘ampla defesa’ como restrita defesa, ‘manifestação concreta da capacidade econômica’ como manifestação provável de capacidade econômica, não é concretizar o texto constitucional. É, a pretexto de concretizá-lo, menosprezar seus sentidos mínimos.” Ob. cit., p. 25.

10 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, p.125.

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positivado, haverá inconstitucionalidade. Se a norma constitucional em algum momento reconhece a existência desse direito, não pode ela, em outra oportunidade, violá-lo.

Consubstanciando este entendimento, as idéias do professor Edvaldo Brito:

É por causa da necessidade de conformação dessas normas com esses valores que se pode examinar se o legislador delas exorbitou, ou não, da sua função que é de potência e não de competência. Ainda que seja, como o é, uma potência, o legislador constituinte não poderá ferir o direito suprapositivo, balizador desse legislador10.

4 A COMPETÊNCIA JUDICIAL DO CONTROLE EM FACE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS

Ab initio, deve-se ressaltar que ocorrem, claramente, inúmeros equívocos por parte da doutrina e jurisprudência alemães, do fato de se reconhecer que a uma norma constitucional pode faltar a obrigatoriedade jurídica. Da mesma forma, outras normas jurídicas podem continuar com a competência judicial para declarar tal “não obrigatoriedade” e para deixar de aplicar o direito considerado não vinculativo pelo juiz.

Assim, os problemas de interpretação judicial e doutrinário surgem no momento em que se identifica, de um lado, a não obrigatoriedade material, e de outro, a faculdade judicial de declarar esta não obrigatoriedade. Podem surgir argumentos contrários, no sentido de que é missão personalíssima do legislador o controle de concordância de normas constitucionais (formais) com o conteúdo material da Constituição. Dessa forma, o Parlamento funcionaria como “Guarda da Constituição”, ou seja, ao elaborar uma lei, já estaria, de plano, afirmando sua compatibilidade com as normas que lhe estão supra-ordenadas, comando obrigatório também para os tribunais.

A Lei Fundamental alemã aduz, no art. 93, I, 2, a compatibilidade formal e material do direito federal ou do direito de um Estado federado com esta; e, no art. 100, I, para explicitar a noção de “lei inconstitucional”, de uma violação da constituição de um Estado federado e dessa Lei Fundamental. É de se observar que a formulação contida nos preceitos contribuiu para o errôneo entendimento de que “Lei Fundamental” e “Constituição” consubstanciariam simplesmente o texto constitucional escrito. A verdade é que – deixando de lado a valorização das deduções terminológicas – todo o direito materialmente incorporado na Constituição pela Lei Fundamental, ou por ela pressuposto, se deixa também subsumir no conceito de “Lei Fundamental”. Além disso,

10 BRITO, Edvaldo. Limites da Revisão Constitucional. São Paulo: Sergio Fabris, 1993, p. 35.

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o direito constitucional consuetudinário, que eventualmente venha a complementar a Lei Maior, pertence também a esta, entendida em sentido jurídico, e não filológico.

A conseqüência disso é a possibilidade de se considerar todo o direito alemão – inclusive normas constitucionais formais - como suscetível de controle do ponto de vista de sua compatibilidade com a “Constituição”, sendo esta objetivada em seu mais amplo sentido, abrangendo até mesmo o direito supralegal não escrito (não positivado).

Mas, por outro lado, nada de decisivo se pode retirar em favor de uma faculdade de controle tão vasta, pois esse teor literal acaba obrigando a subsunção de todo o direito constitucional e pré-constitucional material no conceito de “Lei Fundamental”.

4.1 NATUREZA E CONTEÚDO DA COMPETÊNCIA JUDICIAL DE CONTROLE

Tal competência não foi criada pelo legislador da Lei Fundamental, mas por ele encontrada como um instituto jurídico já conhecido da ordem jurídica alemã, reconhecido pela doutrina majoritária e aplicado constantemente pelos tribunais, sobretudo desde a decisão basilar do Supremo Tribunal do Reich, de 04-11-1925. Tal decisão foi o precedente para discussões a respeito da decisão judicial de controle.

O Conselho Parlamentar quis monopolizar nos Tribunais Constitucionais essa competência. De forma mais exata, não toda ela, apenas a competência para a negação definitiva da validade da norma questionada. Assim, pertence a esse monopólio tudo o que, por definição, pertencer à competência judicial de controle, não entrando, por exemplo, o controle da legalidade dos regulamentos jurídicos, o qual permanece na competência difusa de todos os Tribunais. Se à competência judicial de controle, considerada em si mesma, pertencer também o controle de validade de normas constitucionais, nomeadamente da sua legitimidade em ambos os aspectos, então ele entrará do mesmo modo no “monopólio decisório” dos Tribunais Constitucionais, previsto no já mencionado art. 100, I, da Lei Fundamental; se, pelo contrário, tal controle não pertencer, por princípio, à competência judicial de controle, também os Tribunais constitucionais não poderão reivindicá-lo. Neste ponto há grande divergência (tanto doutrinária, quanto jurisprudencial) se o controle de validade das normas constitucionais estaria ou não inserido na competência judicial de controle e, por conseqüência, se seria monopolizado pelos Tribunais Constitucionais.

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Segundo o próprio Bachof, o monopólio decisório dos tribunais constitucionais não contradiz o princípio da competência genérica de todos os tribunais. Tal como noutras questões jurídicas, os tribunais inferiores têm que acatar o “melhor” juízo dos tribunais superiores e o mesmo acontece no tocante à validade de normas jurídicas.

O juiz pode e deve exigir que a validade das normas jurídicas que tem de aplicar esteja sujeita ao controle judicial. Exigir que qualquer juiz estivesse autorizado a proceder, ele próprio, a este controle, seria contrariar o mandamento da segurança jurídica, pondo em risco um princípio da justiça. Resta clara, assim, a impossibilidade de controle incidental por parte dos juízes.

Em face do controle tão extenso dado aos tribunais, poderia ser verificado algum perigo para a segurança jurídica, mas não é o que vem acontecendo com os tribunais alemães. Os tribunais que afirmaram uma correspondente competência de controle, não declararam efetivamente num único caso como inválida uma norma constitucional.

Assim, infere-se que os tribunais alemães, de modo algum, querem preterir um sistema de valores próprios em lugar dos valores do legislador constitucional. Visto serem integrados por uma elite de juízes, pressupõe-se que estes sempre observarão a justa medida, com base na communis opinio, e não em concepções subjetivas.

Uma vez que se menciona “perigo”, não se pode olvidar que qualquer restrição da competência judicial de controle dos tribunais constitucionais é perigosa, pois, nesse caso, não só existirá a tentação de um “controle disfarçado”, como também seria posto em dúvida o pretendido – e, justamente por razões de segurança jurídica, desejável – monopólio da decisão. Na verdade, os tribunais que não dispõem de uma faculdade própria de decisão, apenas terão de se submeter à sentença do Tribunal Constitucional competente, na medida em que este tenha efetivamente feito uso da competência de controle. Se assim não acontecer, o tribunal que levantou a questão fica de novo livre.

Esse quadro não pode ser afetado em virtude de admitir-se que a decisão do Tribunal Constitucional Federal tem força de lei. Quando o tribunal decide sobre a validade da norma questionada, o faz de forma a saber se esta é compatível ou não com a Lei Fundamental (melhor dizendo, com o que o dito Tribunal entende por Lei Fundamental). Se o tribunal não compreende aí o direito supralegal, então na sua eventual decisão de que a norma é válida, significaria apenas sua validade à luz do texto constitucional que serviu de base ao controle, e não necessariamente à luz também de

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outros critérios. Diante do exposto, deve-se fixar a premissa de que aos Tribunais Constitucionais compete o controle da constitucionalidade, no mais amplo sentido da validade, de normas constitucionais à luz de todo o direito incorporado na Constituição (Lei Fundamental ou Constituição de um Estado federado) ou por ela pressuposto.

Então, a isto corresponde a obrigação de todos os tribunais restantes de provocar a atuação do Tribunal competente, sempre que pretendam recusar a validade de uma norma da Constituição. E este último não deve apenas recusar efeito a uma norma inválida, via controle incidental, deve também declarar expressamente a sua invalidade.

5 A TEORIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS E O ORDENAMENTO BRASILEIRO

A teoria de Otto Bachof toma como pressuposto a existência de um direito supralegal e a hierarquia entre as normas constitucionais. No que tange ao direito supralegal, o entendimento é pela não existência do mesmo, acreditando, inclusive, que não há limitação ao Poder Constituinte originário. Este Poder configura-se como poder de fato e não de direito, sendo autônomo, pois não existe outro antes nem acima dele, e incondicionado, pois não se subordina a nenhum outro poder.

Em referência à hierarquia entre as normas constitucionais, a posição aqui tomada é a de rechaçar tal possibilidade, por viger no constitucionalismo pátrio o princípio da unidade da Constituição. Entende Luis Roberto Barroso:

O fundamento subjacente a toda a idéia de unidade hierárquico-normativa da Constituição é o de que as antinomias eventualmente detectadas serão sempre aparentes e, ipso facto, solucionáveis pela busca de um equilíbrio entre as normas, ou pela exclusão da incidência de alguma delas sobre dada hipótese, por haver o constituinte disposto neste sentido.11

Compartilhando desse entendimento, deve-se apontar a opinião do jurista português J. J. Gomes Canotilho:

O princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade (não há normas só formais, nem hierarquia de supra-infra-ordenação dentro da lei constitucional).12

Trata-se de conseqüência lógica do reconhecimento das supracitadas características do poder constituinte originário, bem como da percepção sistêmica do

11 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo : Saraiva, 1996, p. 196.

12 Apud POGLIESE, Marcelo Weick. Possibilidade da existência de normas constitucionais inconstitucionais. Disponível em: . Acesso em: 22 dez. 2007.

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ordenamento jurídico, em especial de sua Lex Fundamentalis. Não se pode mais aceitar uma postura hermenêutica assistemática, mostrando-se imprescindível uma completa visão sobre o ordenamento jurídico, em especial sobre a Carta Magna.

Neste sentido, vale a transcrição do quanto leciona Eros Roberto Grau:

A interpretação do direito é interpretação do direito, no seu todo, não de textos isolados, desprendidos do direito.

Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços.

A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum.13 (grifou-se)

Completa, ainda, o supracitado autor:

Santi Romano [1964:211] insiste em que a interpretação da lei é sempre interpretação não de uma lei ou de uma norma singular, mas de uma lei ou de uma norma que é considerada em relação à posição que ocupa no todo do ordenamento jurídico; o que significa que o que efetivamente se interpreta é esse ordenamento e, como conseqüência, o texto singular. Hermann Heller [1977:274], por outro lado, observa que o preceito jurídico particular somente pode ser fundamentalmente concebido, de modo pleno, quando se parta da totalidade da Constituição política. A propósito, diz Geraldo Ataliba [1970:373]: “(...) nenhuma norma jurídica paira avulsa, como que no ar. Nenhum mandamento jurídico existe em si, como que vagando no espaço, sem escoro ou apoio. Não há comando isolado ou ordem avulsa. Porque esses – é propedêutico – ou fazem parte de um sistema, nele encontrando seus fundamentos, ou não existem juridicamente”.14 (grifou-se)

Para além da mencionada natureza sistêmica, que é indispensável a uma correta interpretação constitucional, não se pode olvidar, também, que existe flagrante diferença entre o texto e a norma, respectivamente constituindo símbolo e significado, conforme leciona Eros Roberto Grau:

Aparecem de modo bem distinto, neste ponto de minha exposição, o texto (enunciado, disposição) e a norma. Texto e norma não se identificam: o texto é o sinal lingüístico; a norma é o que se revela, designa [Canotilho 1991:225]. [...]

A interpretação, destarte, é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual pesquisamos as normas contidas nas disposições. Do que diremos ser – a interpretação – uma atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas.15

Com isso, faz-se imprescindível destacar que o texto (aqui, mais especificamente referindo-se ao suposto dispositivo constitucional inconstitucional) não pode ser confundido com a norma. Nesse contexto, deve-se compreender que apenas se a norma,

13 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Editora Malheiros, 2003, p. 40.

14 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Editora Malheiros, 2003, p. 127.

15 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Editora Malheiros, 2003, p. 80-81.

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fruto do processo interpretativo, revelar-se incompatível com a Constituição é que se poderia defender uma inconstitucionalidade de norma constitucional originária.

Essa concepção diferenciadora de texto e norma mostra-se imprescindível para a superação dos ranços hermenêuticos que ainda insistem em se mostrar presentes em nossa dogmática jurídica, conforme preceitua Lenio Luiz Streck:

[...] não obstante os avanços das teses antimetafísicas de cunho lingüístico-fenomenológicos, não é temerário dizer que a dogmática jurídica sofre ainda de uma compulsiva lógica da aparência de sentidos, que opera como uma espécie de garantia de obtenção, em forma retroativa, de um significado que já estava na lei desde sua promulgação. Acredita-se ainda no legislador como sendo uma espécie de onomaturgo platônico ou que o Direito permite verdades apofânicas. [...] há uma constante busca do “correto sentido da norma”, um sentido “dado”, um “sentido-em-si”, enfim, uma espécie de “sentido-primevo-fundante”.16

No entanto, conforme pontuado acima, para além do princípio da unicidade, tem-se que considerar que a interpretação jurídica não pode ser outra que não a de natureza sistêmica. Daí poder afirmar-se que uma norma constitucional originária (fruto de um proceder interpretativo de cunho sistêmico) não pode revelar-se inconstitucional.

Para além disso, imperioso destacar a influência subjetiva do intérprete sobre o resultado da atividade hermenêutica. Trata-se da natureza cultural e histórica intrínseca ao ser humano, conforme destaca Rogério Gesta Leal:

A hermenêutica de que fala Gadamer é realizada por um sujeito histórico, que parte de condições espaciais e temporalmente dadas, ou seja, em todo o processo de compreensão se parte de pressupostos ou pré-juízos – no sentido etimológico de juízos prévios – que viabilizam e constituem uma certa memória cultural presente em teorias, mitos, tradições, etc. Significa dizer que o sujeito que compreende não parte do zero, mas, ao contrário, conta com toda uma história que lhe caracteriza e mesmo o define como sujeito.17

Neste mesmo sentido, destacando a influência do aspecto subjetivo sobre os fenômenos jurídicos, destacam Alexandre Bizzotto, Augusto Jobim e Marcos Eberbardt:

As palavras de SARAMAGO ecoam: cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem, e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo e fabricam maravilhas.18

16 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 74.

17 GESTA LEAL, Rogério. Hermenêutica e Direito. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2002, p. 144 apud ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: A bricolage de Significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 193.

18 SARAMAGO, José. A jangada da pedra. Rio de Janeiro: Record-Altaya, 1980 apud BIZZOTTO, Alexandre; JOBIM, Augusto; EBERHARDT, Marcos. Sistema Acusatório: (apenas) uma Necessidade do Processo Penal Constitucional. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de (org.); CARVALHO, Salo de (org.). A Crise do Processo Penal e as Novas Reformas de Administração da Justiça Criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006, p. 27.

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Diante disso, a possibilidade de se identificar uma norma constitucional originária como inconstitucional (o que, vale ressaltar, sempre decorreria de um proceder interpretativo capaz de extrair do texto a norma) resultaria num inegável fenômeno gerador de insegurança jurídica. Isso porque o Poder Constituinte originário, ao invés de se configurar como poder de fato, autônomo e incondicionado, acabaria por se configurar como um poder legiferante “qualquer”, apenas exigindo-se para a sua flexibilização uma atividade hermenêutica calcada em outras normas constitucionais ditas de hierarquia superior ou, pior, em um dito direito supralegal.

Nesse contexto, faz-se imperiosa a constatação de que a determinação da hierarquia entre normas constitucionais, do que seria esse direito supralegal, bem como da própria norma constitucional (já que esta não se confunde com o texto) sempre ficarão a cargo da atividade hermenêutica de um sujeito interpretativo.

Por fim, vale frisar o aspecto subjetivo intrínseco à atividade interpretativa de produção da norma sobre o texto, que, por si só, já demonstra a impossibilidade de se falar numa norma constitucional inconstitucional, sob pena de incomensurável insegurança jurídica. Sendo a norma fruto de um proceder interpretativo sobre o texto, conforme destaca Eros Roberto Grau19, vale a doutrina de Ronald Dworkin:

[...] Quero dizer que uma interpretação é, por natureza, o relato de um propósito; ela propõe uma forma de ver o que é interpretado – uma prática social ou uma tradição, tanto quanto um texto ou uma pintura – como se este fosse o produto de uma decisão de perseguir um conjunto de temas, visões ou objetivos, uma direção em vez de outra.20

Já no que concerne à análise sob a ótica jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal decidiu, à unanimidade, em acórdão prolatado face à Adin n° 815-3 do Distrito Federal, em que foi relator o Ministro Moreira Alves, não conhecer essa ação por impossibilidade jurídica do pedido sob os argumentos que se seguem na Ementa:

- Ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafos 1° e 2° do artigo 45 da Constituição Federal.

- A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras é incompossível com o sistema de Constituição rígida.

- Na atual Carta Magna ‘compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição’ (artigo 102, “caput”), o que implica dizer que esta jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não,

19 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Editora Malheiros, 2003, p. 80-81.

20 DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 71.

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violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição.

- Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para a sustentação da tese de inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou emendar a Constituição elabora pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação às outras que não sejam consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas.

Ação não conhecida por impossibilidade jurídica do pedido.

Por fim, vale salientar que o Supremo Tribunal Federal só admite a possibilidade de controle de constitucionalidade em relação ao Poder Constituinte derivado, apreendendo-se, portanto, que as revisões e as emendas devem estar balizadas pelos parâmetros estabelecidos na Carta Magna.

Diante do quanto exposto, faz-se imperioso concluir pela impossibilidade de uma inconstitucionalidade de norma constitucional originária, seja pelo reconhecimento da distinção entre texto e norma e a conseqüente interferência interpretativa e lingüística sobre os fenômenos jurídicos, seja pela própria limitação imposta pela Constituição ao Supremo Tribunal Federal no que concerne à sua função de guarda da Constituição, conforme esposado na sua supracitada manifestação.

REFERÊNCIAS

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