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segunda-feira, 28 de maio de 2012

Prefeitura de SP ignora Constituição e súmulas do STF


Prefeitura de SP ignora Constituição e súmulas do STF

A pretexto de consolidar as normas que regulamentam o ISS a prefeitura paulistana baixou o Decreto nº 53.151 publicado em 18 deste mês e já em vigor. Quando existia algum bom senso por estas bandas, regulamentos serviam para regulamentar uma lei, explicando como suas normas seriam observadas, quais seriam os livros fiscais se fosse o caso, etc.
A Constituição Federal assegura que ninguém está obrigado a fazer alguma coisa senão em virtude de lei. É o conhecido princípio da legalidade absoluta, um dos pilares que sustentam aquilo que nos países que se dizem civilizados chama-se de estado democrático de direito.
As três pessoas que assinam o tal decreto não possuem formação jurídica. Consta que se tratam de engenheiros, economistas ou administradores. Mas não lhes favorece a atenuante da ignorância, pois contam com um amplo quadro de advogados à sua disposição. Aliás, o que é mais triste, até mesmo para defender judicialmente as diversas bobagens que os chefes cometem.
Esse novo decreto de novo não tem nada. No início repete as hipóteses de incidência do tributo, já definidas na lei complementar (nacional) nº 116/2003. Essa repetição é desnecessária, até porque se o município pretendesse alterar alguma coisa isso seria apenas uma anedota ridícula. Só a lei complementar pode definir o fato gerador do tributo.
Pretende ainda o regulamento definir responsabilidades do contribuinte e de terceiros, matérias que se caracterizam como normas gerais de direito tributário, reguladas desde 1966 pelo Código Tributário Nacional. Ao que parece os técnicos municipais ainda não sabem direito qual é o campo de atuação e qual a competência legislativa do município.
Quem deveria refletir sobre o assunto e fazer alguma coisa a respeito (para isso são pagos) seriam os vereadores. Mas eles preferem distribuir títulos honoríficos sem qualquer relevância ou dar nome a vias públicas, praças ou viadutos. Se quando repete o que já está determinado na lei complementar o tal regulamento faz o que não precisa, quando tenta ser inovador a coisa piora.
O artigo 70 do tal decreto afirma:
“A Secretaria Municipal de Finanças poderá firmar convênio com as Delegacias de Polícia da Divisão de Investigações Sobre Crimes Contra a Fazenda do Departamento de Polícia Judiciária da Capital - DECAP, a fim de comprovar a veracidade das informações prestadas.”
Ao que parece pretendem as autoridades municipais transformar policiais civis em seus subordinados, estafetas ou despachantes. Quando alguém vai à prefeitura fazer uma inscrição no cadastro, entrega documentos tais como cópias do RG, CPF, contas de luz, etc. Agora, deseja a prefeitura que agentes da polícia civil investiguem se tais documentos são verdadeiros.
Esses legisladores tresloucados ignoram vários aspectos práticos a respeito disso tudo. Primeiramente, veja-se que a Lei Orgânica da Polícia Civil paulista não permite esse suposto “convênio”. Diz seu artigo 6º :
“É vedada, salvo com autorização expressa do Governador em cada caso, a utilização de integrantes dos órgãos policiais em funções estranhas ao serviço policial, sob pena de responsabilidade da autoridade que o permitir.

Por outro lado, a Constituição Federal, no artigo 144, atribui à Polícia Civil competência para apurar infrações penais e exercer a chamada polícia judiciária. Não lhe compete realizar pesquisas sobre legitimidade de documentos fiscais, como se fosse subordinada ao fisco municipal. Ela só age nos termos da lei e no seu âmbito restrito de atribuições.
Já se noticiou que uma porcentagem enorme de inquéritos policiais não chegam a esclarecer supostos crimes, porque a polícia não tem meios humanos e materiais para tudo isso.
As Delegacias de Crimes Fazendários, explicitamente citadas no artigo 70, estão sobrecarregadas de trabalho, boa parte como resultado da atuação ensandecida e desordenada de alguns fiscais inclusive municipais, que lavram diversos autos de infração sobre fatos semelhantes envolvendo o mesmo contribuinte, o que implica não no milagre, mas na tragédia da multiplicação dos inquéritos.
Essas delegacias há muito tempo estão necessitando de mudar do local em que se encontram, totalmente inadequado e carente de espaço suficiente para que os trabalhos sejam feitos com o mínimo de conforto que funcionários e público merecem.
Ademais, conferência de documentos no serviço público é muito simples. Estamos na era da internet e com os recursos da tecnologia os servidores municipais podem e devem se desincumbir dessa tarefa. Pretender usar serviço de policial onde não há crime é apenas mais uma tentativa ridícula de constranger o contribuinte. Parece que a secretaria de finanças pretende se especializar nessa atividade: constranger, criar problemas, aborrecer, gerar prejuízos, etc., tudo com o objetivo de impedir que as pessoas trabalhem.
Qualquer habitante desta que é a maior cidade do país sabe que a atividade que mais cresce por aqui é a de serviços. Essa é a vocação natural das grandes metrópoles no mundo todo. Todavia, a prefeitura quer inverter o curso da história e tentar atrapalhar ainda mais nossa cidade.
O nosso governador há alguns anos afirmou que nosso estado estava perdendo indústrias e deixando de crescer. Ele estava mal informado. Posso invocar como testemunha um fato bem conhecido.
Uma fábrica de ferramentas que tinha sede em Santo André, com cerca de 200 empregados, resolveu mudar-se para Minas Gerais, onde recebeu incentivos. Isso não foi uma perda, mas um ganho. O imóvel onde estava a fábrica em Santo André foi vendido e no local construído um moderníssimo shopping center, onde hoje trabalham cerca de 1.000 empregados, cuja média salarial é muito maior do que a que ganhavam os metalúrgicos que foram para outro estado. Todos ganharam, inclusive o estado.
No mesmo decreto insere-se norma que diz que o inadimplente no ISS não poderá emitir nota fiscal eletrônica. Já tratamos desse assunto em outro trabalho aqui publicado. Nada muda. Decreto não é lei. E mesmo que fosse numa lei contida aquela norma, ela continuaria inconstitucional e ferindo 3 súmulas do STF. A prefeitura errou antes e decide persistir no erro. Quem afirmou que há erro são as diversas decisões judiciais, todas a favor dos contribuintes.
O decreto ainda tenta dar legitimidade a interpretações ilegais das normas tributárias em vigor. O seu artigo 4º, ao tentar definir o que é estabelecimento, traz uma pérola : diz que para configurar estabelecimento o local tem que ter

“I - manutenção de pessoal, material, máquinas, instrumentos e equipamentos próprios ou de terceiros necessários à execução dos serviços
II - estrutura organizacional ou administrativa;
III - inscrição nos órgãos previdenciários;
IV - indicação como domicílio fiscal para efeito de outros tributos;
V - permanência ou ânimo de permanecer no local, para a exploração econômica de atividade de prestação de serviços, exteriorizada, inclusive, através da indicação do endereço em impressos, formulários, correspondências, "site" na internet,propaganda ou publicidade, contratos, contas de telefone, contas de fornecimento de energia elétrica, água ou gás, em nome do prestador, seu representante ou preposto.”

Isso comprova que a prefeitura quer dificultar a ação das empresas que tenham sede em outros municípios e que se utilizam dos chamados escritórios virtuais. Todavia, os escritórios são LEGAIS, pagam impostos e podem funcionar normalmente, o que ocorre há décadas em muitos países. A atividade de escritório virtual está consagrada na lei complementar 116 e reconhecida no próprio decreto aqui citado.
Há muitos outros aspectos a comentar no decreto. O principal é denunciarmos essa desarmonia que existe entre o programa político anunciado pelo prefeito em sua posse e o que vem sendo praticado. Ele anunciava uma administração dinâmica, preocupada com o desenvolvimento da cidade e o bem estar da população.
Hoje, infelizmente, o que vemos é uma prefeitura que, por meio de uma administração fazendária arrogante, ignora a Constituição Federal e súmulas do STF e vive o tempo todo sacaneando o contribuinte. Parece ter interesse em impedir que as pessoas trabalhem.
Raul Haidar é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor Jurídico, 28 de maio de 2012

Hans Kelsen e a tradição do Direito Romano



Caricatura: Arnaldo Godoy - Colunista [Spacca]Hans Kelsen nasceu em Praga, em 1891, quando as margens do Moldava ainda pertenciam ao Império Austro-Húngaro. Kelsen privou dos neopositivistas lógicos do Círculo de Viena, nutrindo a purificação das ciências em face de preocupações metafísicas, na crise epistemológica que admitia que a ciência não poderia pronunciar juízos de valor.
Kelsen é o autor intelectual da Constituição republicana austríaca. Lecionou na Universidade de Viena de 1919 a 1929. Foi juiz na Áustria por nove anos, de 1921 a 1930. Em 1934, publicou sua Teoria Pura do Direito. Fugiu do nazismo e foi recebido nos Estados Unidos, em Berkeley, onde lecionou até 1952. Em outubro de 1973, aos 92 anos, morreu na Califórnia.
Kelsen foi injustamente acusado de reducionista por ter defendido alguma pureza científica no que se refere ao Direito. Para ele, a ciência jurídica é ciência pura, preocupada com normas. Retomou kantianamente a teoria da norma fundamental, radicada na primeira norma posta, de feição constitucional. A norma posta deve-se a uma norma suposta; a norma hipotética fundamental vem solucionar a questão do fundamento último da validade das normas jurídicas. Afinal, o que legitima o Direito?
Para uma adequada, correta e equilibrada compreensão do positivismo jurídico, é indispensável a leitura de Dimitri Dimoulis, autor de um dos mais bem elaborados livros de filosofia jurídica publicados no Brasil, Positivismo Jurídico, que saiu pela Editora Método. O autor desmistifica a auréola mefistofélica que se impôs ao pensamento de Kelsen. Trata-se de livro que revela um pensador lúcido. Dimoulis é intelectualmente preparadíssimo, conhece toda a literatura referente ao assunto, que cita com a familiaridade dos verdadeiros mestres. É livro imperdível; fundamental para compreensão do positivismo jurídico, corrente tão criticada por aqueles que não leram os autores canônicos e que, se o fizeram, não compreenderam nada.
Acrescentaria, no plano mais fático, a primorosa edição da autobiografia de Kelsen, de autoria do ministro Dias Toffoli, e que conta também com a infatigável pesquisa de Otavio Luiz Rodrigues Junior, jurista cearense que não se rende ao engodo de um imaginário Direito Privado de feição metafísica e principiológica. Otávio pertence a uma linhagem de civilistas cujo antepassado mais pretérito é Clóvis Beviláqua, também cearense. O Direito Privado detém dignidade inatacável pelas inseguranças de nossos tempos.
Estado e Direito se confundem em Kelsen. Não haveria leis inconstitucionais ou decisões ilegais. Paradoxo talvez vivido pelo próprio Kelsen, supostamente forçado a admitir a eficácia do Direito nazista. Para o mestre de Viena o cientista do Direito deve preocupar-se com a lei, e com problemas de aplicabilidade destas, tão somente. Kelsen nos dá conta de que o conhecimento jurídico só é científico se tentar ser neutro, ainda que não se transcenda da neutralidade do eunuco. A pureza do Direito decorreria de corte epistemológico que definiria o objeto e de um corte axiológico que afirmaria a sua neutralidade.
O jurista deveria identificar lacunas e apurar antinomias, a exemplo de questão tratada em um dos livros de Norberto Bobbio, o mais arejado dos juristas italianos do século XX. O problema também não passou despercebido por Lon Fuller, ligado ao realismo jurídico norte-americano; Fuller nos deixou o saboroso caso dos exploradores de cavernas.
Para Kelsen, autêntica é a interpretação do Direito pelos órgãos competentes: a decisão judicial qualifica uma norma jurídica individual. Tudo muito simples, embora tudo muito complicado por seus detratores. No entanto, concedo, não havia no contexto do livro de Bobbio a necessidade de enfrentarmos o espinhoso problema do conflito entre normas constitucionais, reveladoras de princípios que matizam fundamentos de nossa cultura.
Nesse sentido, ainda que correndo o risco de apresentar uma historiografia pouco consistente, apelo para o monumental legado jurídico romano, mesmo que talvez conspurcado pelos glosadores medievais, e reconstruído pragmaticamente pela pandectística alemã do século XIX.
O rígido formalismo dos romanos e a concepção de um Direito como arte que se aprende e que se impõe ao indivíduo como um critério consolidado identificariam universo jurídico criado por especialistas. A jurisprudência romana não vislumbrava oferecer armas para todas as teses e alternativas possíveis no campo judicial. Buscava-se definição certa para os comportamentos e um critério resolutivo dos conflitos. Era uma possibilidade técnica de decisão. O especialista punha-se a serviço da vida real. O generalismo defendido por uma epistemologia crítica mais recente redundou no achismo, na insegurança da opinião e no abuso de conhecimento.
Assim, higienicamente livre de ingerências sociológicas, porque expressão própria do poder, o Direito Romano pode ser convergente ao legado de Kelsen, na medida em que pretensamente puro, imparcial, vacinado contra essa ansiety of contamination, que também marca alguma subjetividade da pós-modernidade, isto é, se levarmos com seriedade a crítica ao Direito como uma grande narrativa.
Kelsen é figura central no debate jurídico contemporâneo, a propósito das relações entre Direito e política, entre norma e poder, questão talvez recorrente no Direito Romano, cenário cultural que é referencial indispensável para o estudioso do Direito.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é consultor-geral da União, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 27 de maio de 2012